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domingo, 14 de maio de 2017

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segunda-feira, 25 de julho de 2016

Música Sertaneja Universitária e valores dominantes: um estudo do discurso das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas

Música Sertaneja Universitária e valores dominantes: um estudo do discurso das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas

                                                                                    Gabriel Teles Viana[1]
                         Felipe Mateus de Almeida[2]

Resumo: O presente artigo propõe refletir sobre a transmissão de valores dominantes (axiológicos) através das letras da música sertaneja universitária. Nesse sentido, far-se-á uma discussão sobre elementos que compreendemos como fundamentais para se analisar este fenômeno, quais sejam, a questão do regime de acumulação integral, valores, a história da música sertaneja, o vínculo com a totalidade das relações sociais e por fim, a análise de uma música sertaneja universitária com o objetivo de demonstrar seu caráter axiológico.
Palavras-chave: Música Sertaneja Universitária, Regime de Acumulação, Valores, Análise do discurso

Abstract: This article offers a reflection about the transmission of dominant values (axiologics) through lyrics of the new country music. Accordingly, will be made a discussion on what we understand as fundamental elements to analyze this phenomenon, which they are, the issue of accumulation values, the history of country music, the bond with the totality of social relations and finally, examination of the new country music in order to demonstrate its axiological character.
Keywords: new country music, accumulation, values, speech analysis

INTRODUÇÃO:
     Este trabalho se vincula principalmente a questão da produção cultural e a música sertaneja universitária. Pretendemos analisar os valores inseridos e reproduzidos pelo chamado “Sertanejo Universitário” através do discurso transmitido em suas letras e canções.
     Como objetivo geral, pretendemos apresentar uma análise crítica dos valores inseridos e reproduzidos pelo sertanejo universitário. Além disso, pretende-se fazer uma discussão teórica sobre os valores e sua produção social e apresentar uma reflexão sobre a relação entre música e sociedade.
      Inicialmente, será feita uma análise histórica sobre as transformações do modo de produção capitalista. Após isso, será feita uma análise das transformações ocorridas na música sertaneja a partir da reestruturação capitalista e do nascimento do chamado regime de acumulação integral (Viana, 2009) para que se possa compreender os valores que se tornaram dominantes na contemporaneidade e, consequentemente, se tornaram presentes no campo da produção cultural e musical.
AS TRANSFORMAÇÕES DO MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA
A crescente racionalização e reestruturação do modo de produção capitalista ocorrida com o surgimento do regime de acumulação toyotista e o enfraquecimento do regime de acumulação fordista e sua rigidez no processo de produção de mercadorias e nas demais estruturas existentes no capitalismo, trouxeram mudanças significativas.
O fordismo, o taylorismo e o toyotismo foram as três etapas do desenvolvimento capitalista que antecederam a revolução informacional de nossos tempos. Segundo Viana:
Taylor se preocupou com o tempo de trabalho e seu aproveitamento máximo. Surge assim a racionalização do processo de trabalho, e sua vigilância se torna mais profunda. O método elaborado por Taylor apresentava um controle do tempo de trabalho, que passa a ser cronometrado. Sem dúvida, o objetivo de Taylor é aumentar a produtividade do trabalho (o que é equivalente, na maioria dos casos, ao aumento de extração de mais-valor relativo) através de diversos artifícios, entre os quais o controle rígido do processo de trabalho, o uso do cronômetro, os prêmios por produtividade individual, o parcelamento das tarefas, a formação de especialistas em gerência, a divisão entre trabalho de elaboração e de execução etc (op.cit., 2009, pp. 65 e 66).
                O taylorismo possuía como características um regime rígido que priorizava a vigilância profunda nos ambientes de trabalho; a racionalização dos trabalhadores e dos ambientes de trabalho; possuía um caráter burocrático devido a criação dos cargos de gerentes científicos e, além disso, tinha uma produção centralizada e baseada no sistema Just In Case (JIC). O taylorismo foi o primeiro regime que se preocupou com a questão da extração do mais-valor relativo[3] e com a aplicação do processo científico a produção através do saber-fazer dos operários e dos especialistas encarregados, ou seja, havia uma hierarquia e uma burocracia nesse regime de acumulação.
            Desde o final dos anos 60 até o começo da década de 70, várias tentativas com o objetivo de deixar o espaço fabril mais atraente foram feitas para que os operários se interessassem mais pelo trabalho nas fábricas. Tais tentativas tinham como meta evitar o absenteísmo e os demais descontentamentos dos trabalhadores com o regime e o modo de regulação fordista do trabalho. Além disso, segundo Heloani (2003, p.105) “a cisão dogmática entre elaboração e execução, a fragmentação e consequente especialização exagerada (gerando insatisfação e alienação)”, fizeram com que se pensasse em uma mudança no modo de regulamentação e no regime de acumulação que vigorava no modo de produção capitalista.
            É nesse contexto que surge o modo de regulamentação/acumulação toyotista ou como alguns preferem chamá-lo, ohnista. Para Heloani o toyotismo pode ser caracterizado como uma:
(...)inovadora forma de produção, no lugar de gigantescas organizações verticalizadas, que produzem desde a matéria-prima até seus produtos finais, ocorre a descentralização do processo produtivo. Uma enorme rede constituída por pequenas empresas responsabiliza-se pelo fornecimento de peças e outros elementos para serem utilizados por núcleos centrais que dispõem da visão do conjunto e que geralmente possuem tecnologia avançada e grande poder de barganha com seus fornecedores (op.cit., 2003, p.119).
Nesse sentido, o toyotismo deve ser compreendido como um modo de regulamentação e organização da produção, das fábricas e do trabalho que possui como características a descentralização; a tecnologia avançada; o sistema Just In Time (JIT) e a flexibilização e integração das subjetividades dos trabalhadores, ou seja, ao contrário do taylorismo que tinha como base o sistema Just In Case (JIC)[4], o toyotismo trabalha com o sistema Just In Time(JIT); é um modelo onde a produção não é mais produzida em massa mas é produzida através da demanda por produtos.
Porém, o que diferenciou de maneira mais visível o taylorismo do toyotismo foi a questão da flexibilização e da integração das subjetividades dos trabalhadores ( Harvey, 2003; Heloani, 2003). Enquanto no taylorismo o modo de regulamentação do trabalho era mais rígido e fundamentado em ordens, hierarquia e burocracia, no toyotismo substituíram-se as ordens pelas regras, ou seja, foi disseminada uma ideologia que fazia o trabalhador pensar que era parte importante da empresa; que era um ser detentor de um poder de avaliar e concordar ou discordar das opiniões de seus superiores, de seus subordinados ou de seus companheiros de função. O trabalhador passou a acreditar em um discurso no qual a empresa era vista como uma matriarca que deveria sempre ser defendida e idolatrada ele ainda continuava a ser manipulado e vigiado, e além da parte racional (meios tecnológicos e informáticos), agora ele também era vítima de uma ideologia[5].
            Nesse sentido, podemos afirmar que ao contrário do que pensava David Harvey em seu livro “condição pós-moderna” onde defende a concepção de que vivemos em um regime de acumulação flexível, podemos afirmar – assim como pensa Viana (2009) – que vivemos em um regime de acumulação integral. Portanto, faz-se necessário uma breve discussão sobre esse debate entre regime de acumulação integral e regime de acumulação flexível para que se possa salientar a importância das transformações do modo de produção capitalista e sua relação com as transformações no campo da produção cultural.
REGIME DE ACUMULAÇÃO INTEGRAL OU REGIME DE ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL?
            Harvey em seu livro “Condição Pós-Moderna” faz uma discussão sobre taylorismo, fordismo e toyotismo e diz que o toyotismo pode ser caracterizado como um regime de acumulação flexível. Harvey recorre à linguagem da escola de regulamentação que pode ser entendida como uma escola que cria um modo de regulamentação que vai fazer com que haja uma materialização do regime de acumulação que toma a forma de hábitos, leis e redes que regulamentam e garantem a unidade e a consistência apropriada entre comportamentos individuais e o esquema de reprodução (Harvey, 2003).O autor conceitua a acumulação flexível como:
(...)um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional (Harvey, 2003, p.140).
A acumulação flexível pode ser compreendida então como um regime que cria uma flexibilização nos processos de trabalho criando novas maneiras de se fornecer os serviços financeiros e como uma acumulação que é responsável por uma nova inovação comercial, tecnológica e organizacional que transformou radicalmente as relações sociais de produção.
Nildo Viana em seu livro “O Capitalismo na era da Acumulação Integral” apresenta uma concepção diferente da concepção defendida por Harvey. Segundo Viana:
Ao se falar de “acumulação flexível”, “especialização flexível”, “flexibilização dos trabalhadores” e “aparato produtivo, vê-se que a palavra é utilizada em sentidos diferentes e inexatos. (...)não existe “flexibilização” do aparato produtivo e muito menos dos trabalhadores, o que existe é uma “inflexibilidade”, pois tanto o aparato produtivo quanto os trabalhadores são submetidos “inexoravelmente” e “implacavelmente” ao objetivo de aumentar a extração de mais-valor relativo. (op.cit., 2009, pp.69 a 70)
            Percebe-se com esta citação, o quanto a proposição de Viana é diferente e mais radical do que a de Harvey. Enquanto Harvey defende a ideia de que o atual regime cria uma flexibilização nos processos de trabalho, no aparato de produção, um relaxamento na disciplina fabril dos trabalhadores, Viana diz o contrário e defende a ideia de que existe um regime de acumulação integral que provoca uma extensão no processo de mercantilização das relações sociais e da busca de ampliação do mercado consumidor.
            Acreditamos que - assim como é colocado por Viana -, essa ideia de acumulação flexível é bastante equivocada. É um termo que deve ser superado e, por isso, também utilizaremos o termo acumulação integral (op.cit., 2009, p.70). Não existe flexibilização dos processos de trabalho e nem um relaxamento na disciplina fabril dos trabalhadores; o termo flexível é apenas mais uma tentativa da burguesia e de suas classes auxiliares de esconder o verdadeiro sentido do processo de superexploração sofrido pelo proletariado. O que se tem hoje é um processo muito maior e mais bem articulado de extração de mais-valor relativo dos trabalhadores, ou seja, um conjunto de discursos, ideias, equipamentos, materiais, leis e códigos que propiciam a burguesia uma grande facilidade para exercerem o processo de exploração dos trabalhadores. A acumulação integral invade todas as esferas da vida social do trabalhador, ela não ocorre só e apenas no ambiente fabril, ela está em suas casas, nos seus ambientes de lazer, nos seus programas de TV, nas suas rodas de conversa, em suas escolas e universidades e, para polemizar um pouco mais, até dentro das igrejas que ainda são um “braço invisível” do estado capitalista burguês. A acumulação integral engloba a esfera política, econômica e social do trabalhador, ela toma conta da cultura e se coloca a serviço dos interesses do capital.
            Pensando pela lógica da acumulação integral, a produção cultural no modo de produção capitalista também passa por mudanças que são necessárias para que se possam manter vigentes os valores da classe dominante em uma sociedade capitalista. Nesse sentido, a música sertaneja passou e tem passado por diversas mutações no decorrer de sua história e acreditamos que isso esteja associado às transformações do modo de produção capitalista e a influência do capital fonográfico e comunicacional (indústria cultural).
MÚSICA E SOCIEDADE
A relação entre música e sociedade é complexa, pois se insere em determinado contexto histórico e em determinadas relações de produção desta sociedade. É necessário partir do pressuposto que a música é produto do trabalho humano, cuja consciência e valores expressos são constituídos socialmente, portanto, a partir relações sociais; e no caso da sociedade moderna, produto das relações sociais do modo de produção capitalista. Nesse sentido, a seguir, partiremos das determinações concretas para analisar o desenvolvimento histórico da música caipira, passando pela música sertaneja até culminar em nosso objeto de análise fundamental: a música sertaneja universitária.
DA MÚSICA CAIPIRA A MÚSICA SERTANEJA
O que compreende-se por música caipira e música sertaneja? O que consiste suas particularidades e vicissitudes? Através destas perguntas, permearemos as convergências e distinções entre estas concepções musicais.
Uma das principais características da música caipira é o seu caráter espontâneo enquanto manifestação artística. Originada da classe camponesa paulista, as manifestações espontâneas eram ligadas à produção, ao trabalho, à religião, ao lazer, enfim, ao universo das relações de produção do caipira paulista. A determinação fundamental da música caipira é, pois, “a sua função enquanto mediador das relações sociais, no sentido de evitar a própria desagregação” (CALDAS, 1979, pág. 80).  Portanto, a mediação é feita desde a sobrevivência econômica, como os mutirões, até o convívio social, como essência da integração entre as populações de bairros. Antônio Candido nos traz a ideia deste papel agregador
O pequeno número de componentes da comunidade, e o entrosamento íntimo das manifestações artísticas com os demais aspectos da vida social dão lugar, seja a uma participação de todos na execução de um canto ou dança, seja à intervenção dum número maior de artistas, seja a uma tal conformidade do artista aos padrões de expectativa, que mal se chega a distinguir. Na vida do caipira paulista vemos manifestações como a cana-verde, onde praticamente todos os participantes se tornam poetas, trocando versos e ápodos; ou o cururu tradicional, onde o número de cantadores pode ampliar-se ao sabor da inspiração dos presentes, ampliando-se os contendores (CANDIDO, 1967, pág. 39).
Quanto ao texto da canção na música caipira, raramente o autor particulariza o seu discurso; ao contrário, o poeta caipira, através de sua cantoria, assume a posição de porta-voz de seu povo. Waldenyr Caldas afirma que “o texto da canção está sempre carregado de uma mensagem que permite a identidade com a comunidade, e que atende aos anseios desta” (CALDAS, 1979, pág. 81). 
No entanto, este cenário começa a esboçar mudanças quando, a partir de uma nova estruturação econômica brasileira, pautada na crescente industrialização e urbanização do país (sobretudo nos grandes centros como São Paulo e Rio de Janeiro), ocorre uma abertura para um novo regime de acumulação.  Com a crise do café, o êxodo rural se intensifica, aumentando significadamente o contingente diário daqueles que emigram para o centro urbano, procurando melhores condições de vida na cidade.  É nesse sentido que a arte “rústica” [6] se urbaniza, destituindo-se de um valor e revestindo-se de outro (CALDAS, 1979).
            De acordo com a bibliografia sobre a gênese da música sertaneja (CALDAS, 1987; NEPOMUCENO, 1999), esta deu início com os trabalhos da Turma do Cornélio Pires.  Após frutífera receptividade deste “novo gênero” musical, Waldenyr Caldas analisa a incorporação da música sertaneja na Indústria Cultural:
Quando os agentes da indústria cultural percebem a grande receptividade dessas músicas no meio rural, e já então com certa, ressonância no meio urbano, com a apresentação da dupla Alvarenga e Ranchinho no Cassino da Urca no Rio de Janeiro, em 1930, e com a gravação de grande aceitação de “Tristeza do Jeca”, por Paraguasu, incentivadas pelas gravadoras. São muitas as duplas que dão início à incorporação da música sertaneja pela indústria cultural (CALDAS, 1979).
            Compreendemos aqui Indústria Cultural nos termos de Adorno e Horkheimer (1975) onde ocorre uma padronização e manipulação da cultura, reproduzindo a dinâmica de qualquer outra indústria capitalista, a busca do lucro, mas também reproduzindo as ideias que servem para sua própria perpetuação e legitimação e, por extensão, a sociedade capitalista como um todo.
            O resultado disso foi o exponencial crescimento da música sertaneja enquanto “novo estilo musical”. Consequência deste crescimento foi a perda de autonomia por parte de seus compositores e cantores, que passaram a produzir não aquilo que ansiavam e conheciam, mas o que era determinado por elementos especializados em mercadologia.
            Nasce, com este movimento histórico, a canção sertaneja de caráter mercantil; caráter esse domina sua existência já desde seus primórdios até os dias de hoje.
Com essas incorporações da música sertaneja pela indústria cultural, percebem-se agora novas conotações ideológicas, que se manifestam de forma evidente na linguagem. O tema predominante, que era antes o viver no campo, alterna-se (não é substituído) agora com os “casos de amor” vividos na cidade, numa nítida demonstração de que a música sertaneja já não pertence mais somente ao meio rural e ao interior, de que ela, agora, é urbana também (CALDAS, 1979).
Com o processo de neoimperalismo (o que alguns ideólogos irão chamar de “globalização”), a música sertaneja sofreu diversas transformações e deixou de representar e atingir apenas uma parcela de uma população que vivia no campo e trabalhava o dia todo para poder ter o que comer e sustentar sua família. Em decorrência disso, a música caipira, que falava do cotidiano de seus compositores e de seus ouvintes passou a se denominar música sertaneja e a atingir um público cada vez mais diversificado e desinteressado sobre o cotidiano, as letras, os problemas e os anseios que eram trazidos pela música caipira. Segundo Santos:
A música sertaneja desde a década de 60 vem apresentando mudanças significativas em vários aspectos, e isso de deve à incorporação de elementos associados à estrutura musical, adequação aos instrumentos elétricos (guitarra, contrabaixo), mistura de ritmos, dentre outros (SANTOS, 2010, p. 159-160).
O sertanejo universitário é a principal prova dessa transformação da música sertaneja. Nesse ritmo musical, a viola e o violão acústico deixam de serem os únicos instrumentos de acompanhamento e abrem espaço para a bateria, o contrabaixo, a guitarra, o violino e o teclado. O rock, o Axé, e o pop se misturam e criam um ritmo que cada vez mais se afasta da realidade dos trabalhadores ouvintes e compositores da música caipira que falava de seu cotidiano e de suas dificuldades.
Nesse sentido, podemos afirmar que o sertanejo universitário é um ritmo advindo da indústria cultura e do regime de acumulação integral capitalista. Isso se deve ao fato de suas letras serem escritas com o intuito de passar os valores de consumismo. Cria-se uma cultura consumista que é passada através das letras e do estilo dos cantores e compositores do sertanejo universitário que acaba por propagar e disseminar essa cultura fazendo com que ela se torne dominante.

            Antes de iniciarmos a análise sobre o discurso nas letras destas música, esboçaremos uma discussão teórica sobre valores e música sertaneja universitária, utilizando algumas canções como um exemplo de reprodução de valores dominantes (axiológicos).

Música e Valores

                A música sertaneja – assim como todas as outras representações artísticas e culturais -, perpassa valores. Todas as relações sociais desenvolvidas em um determinado modo de produção são orientadas segundo determinados valores e determinadas concepções. Em uma sociedade onde vigora o modo de produção capitalista e, consequentemente, uma sociedade onde existem antagonismos entre classes, os valores também são heterogêneos:
O ser humano é um ser social e por isso as relações sociais são fontes de valores. [...] em sociedades heterogêneas (de classes) existe heterogeneidade de valores. [...] cada classe social bem como outros grupos sociais, produzem valores diferentes e, em muitos casos, conflitantes. O conflito social é acompanhado pelo conflito de valores (VIANA, 2007, p. 24).
            Tendo como base essa citação de Viana, podemos afirmar que a ideia de neutralidade é algo impossível de se provar porque todos nós somos orientados segundo determinados valores e concepções orientados por nossa condição de classe.  Em sociedades classistas, os valores podem ser definidos como valores autênticos e valores inautênticos, sendo os valores autênticos universais e os valores inautênticos históricos, transitórios e particularistas (VIANA, op. cit., p. 24). Isso quer dizer que os valores inautênticos são valores falsos que servem como base de legitimação para a ideologia da classe dominante e de suas vontades para que os mecanismos de exploração da classe trabalhadora (no caso do modo de produção capitalista) continuem funcionando de maneira correta sem que ajam conflitos ou levantes revolucionários contra o sistema capitalista. Esses valores são históricos porque são construídos em uma determinada época; são transitórios porque mudam de acordo com as necessidades de reestruturação produtiva do modo de produção capitalista e são particularistas porque representam as vontades apenas da classe dominante e não possuem um caráter universal, verdadeiro e emancipatório com o objetivo de superar as contradições do capital, libertando os sujeitos de suas amarras e de suas contradições. Esse papel de libertação está associado à questão dos valores autênticos que por conta da dominação dos valores inautênticos se encontram acobertados e esquecidos no inconsciente da classe trabalhadora.
            Partindo dessa discussão, nossa concepção de valores está associada à discussão apresentada por Viana que diferencia valores axiológicos de valores axionômicos. Os valores axiológicos podem ser definidos como: “[...] aqueles valores que correspondem aos interesses da classe dominante e, portanto, servem para regularizar as relações sociais. Eles “transformam em virtude”, aquilo que é para reprodução de uma determinada sociedade de classes, uma necessidade” (VIANA, op. cit., p.34). Os valores axiológicos são os valores da classe dominante e representam as necessidades, anseios e vontades dessa classe que acabam sendo universalizados por conta de ideologias[7] que legitimam os interesses dessa classe dominante através de instituições e representações sociais, artísticas e culturais.
            Os valores axionômicos podem ser definidos como uma “forma assumida pelos valores autênticos, expressando, geralmente, os interesses das classes exploradas e/ou grupos sociais oprimidos (VIANA, op. cit., p. 35). Os valores axionômicos são os valores reais e universais que expressam as concepções dos grupos ou classes excluídas em uma determinada sociedade.
            Portanto, nesse artigo, estamos partindo do pressuposto de que a música sertaneja universitária é responsável por transmitir os valores axiológicos da classe dominante que são transitórios, inautênticos, históricos e particularistas através de suas mensagens passadas através de suas letras.  Um exemplo disso está na música “Camaro Amarelo” que é interpretada por Munhoz & Mariano. A letra da música diz o seguinte:
Agora eu fiquei doce, doce, doce, doce
Agora eu fiquei do-do-do-do-doce, doce [2x]

Agora eu fiquei doce igual caramelo
Tô tirando onda de camaro amarelo
Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!"
Quando eu passo no camaro amarelo

Quando eu passava por você na minha CG
Você nem me olhava
Fazia de tudo pra me ver, pra me perceber
Mas nem me olhava
Aí veio a herança do meu ‘véio',
Resolveu os meus problemas, minha situação
E do dia pra noite fiquei rico
Tô na grife, tô bonito
Tô andando igual patrão

Agora eu fiquei doce igual caramelo
Tô tirando onda de camaro amarelo
Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!"
Quando eu passo no camaro amarelo

Agora você vem, né? E agora você quer, né?
Só que agora vou escolher, ta sobrando mulher
Agora você vem, né? E agora você quer, né?
Só que agora vou escolher, ta sobrando mulher

Quando eu passava por você na minha CG
Você nem me olhava
Fazia de tudo pra me ver, pra me perceber
Mas nem me olhava
Aí veio a herança do meu ‘véio',
Resolveu os meus problemas, minha situação
E do dia pra noite fiquei rico
Tô na grife, tô bonito
Tô andando igual patrão

Agora eu fiquei doce igual caramelo
Tô tirando onda de camaro amarelo
Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!"
Quando eu passo no camaro amarelo [2x]

Agora você vem, né? E agora você quer, né?
Só que agora vou escolher, ta sobrando mulher
Agora você vem, né? E agora você quer, né?
Só que agora vou escolher, ta sobrando mulher

Agora eu fiquei doce igual caramelo
Tô tirando onda de camaro amarelo
Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!"
Quando eu passo no camaro amarelo

Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!"
Quando eu passo no camaro amarelo
Agora eu fiquei doce, doce, doce, doce
Agora eu fiquei do-do-do-do-doce, doce


A escolha desta música deu-se por seu caráter hegemônico e dominante de sua reprodução nos meios de comunicações (rádios, televisores, shows e etc.). De autoria da dupla Munhoz & Mariano, oriundos da capital do Mato Grosso do Sul, Campos Grande, a música inicialmente foi lançada na gravação do segundo DVD da dupla “Ao Vivo em Campo Grande Vol. II” em maio de 2012 e posteriormente lançada em formato de download digital em 25 de junho de 2012. Em menos de seis meses, a música, de acordo com Crowley Broadcast Analysis[8], atingiu a primeira posição da tabela brasileira das músicas mais tocadas e ouvidas nas grandes centrais radiofônicas do Brasil. Portanto, impera-se uma análise de quais valores são reproduzidos e perpetuados através do discurso da letra desta música.
De modo geral, a música conta a história, em primeira pessoa, de um jovem rapaz que almeja chamar a atenção de uma moça. No entanto, por não portar elementos (dinheiro, carro, status, etc.) que possibilitam o êxito de convencê-la de ser um rapaz que possa trazer o que ela almeja e valoriza, acaba não conseguindo chamar sua atenção. Mas um acontecimento muda toda a história: seu pai morre e o jovem rapaz recebe uma grande herança, transfigurando sua vida; vestindo roupas de grife, cuidando de sua aparência, “andando igual um patrão” e, sobretudo, com um novo carro: um Camaro Amarelo. É aqui que ocorre uma guinada na história: a moça, que antes o ignorava, por ter apenas uma CG (modelo de uma moto popular), agora com a herança herdada, torna-se interessada pelo rapaz, agora com status social e ostentando artigos de luxo. Mas o rapaz despreza a moça, já que sua nova condição o faz ter possibilidades de chamar a atenção de várias mulheres. E assim a história torna a repetir. 
É evidente uma grande quantidade de elementos axiológicos presentes na letra desta música.  O primeiro deles é a valoração do dinheiro: o dinheiro como valor fundamental (VIANA, 2012). Com a intensificação da mercantilização das relações sociais após a instauração do regime de acumulação integral, a cultura e o universo psíquico dos indivíduos acabam tornando-se cada vez mais mercantilizados, fazendo com o que a essência do indivíduo, o Ser, seja obliterado e substituído pela aparência do TER, como bem salientou Erich Fromm (1987).  O rapaz só poderá conseguir atenção caso tenha dinheiro, o que possibilita comprar roupas de grife, melhorar sua aparência e, acima de tudo, obter um Camaro amarelo, mercadoria de grande apresso e fundamental dentro da música. O status social do dinheiro, portanto, possibilita o indivíduo ter importância dentro da sociedade capitalista.  Outros elementos que estão subordinados a valoração do dinheiro, tais como o tratamento de outro indivíduo como mercadoria, a valoração daquilo que o indivíduo tem e não daquilo que ele é, reforçam o caráter axiológico dos valores inseridos na letra desta música.
O exemplo de “Camaro Amarelo” de Munhoz & Mariano não constitui um caso isolado dentro do universo da Música Sertaneja Universitária; a grande maioria das músicas deste “estilo” refere-se a valores axiológicos do consumismo, da alienação enquanto relação social, do amor romântico burguês, da valoração da ostentação e etc., tais como “Piradinha” de Gabriel Valim, “As mina pira” de Gusttavo Lima, “Ai se eu te pego” de Michel Telo e entre outras.  Claro que há exceções, onde o discurso da ostentação e do dinheiro como valor fundamental não são reinantes, como nas músicas de Victor & Léo, Paula Fernandes etc., no entanto, estes cantam representações cotidianas que em grande medida são ilusórias, sobretudo sobre o amor romântico burguês.
CONCLUSÃO
            A luta cultural perpassa uma luta mais ampla, que é a luta de classes. Nesse sentido, a análise e crítica de produtos culturais que expressam valores axiológicos tornam-se necessários para demonstrar que as relações sociais que constituem estes produtos culturais são determinadas, não naturais e que reforçam a exploração e dominação.  Nesse sentido, a Música Sertaneja Universitária cumpre um papel de obliterar o avanço na consciência para a emancipação humana e perpetuar valores axiológicos da classe dominante.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ADORNO, Theodor. O fetichismo na música e a regressão da audição. In: Os pensadores, São Paulo: Editora Abril, 1975, vol. XLVIII.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969.
_________________. Os parceiros do Rio Bonito. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1971.
CALDAS, Waldenyr. O que é música sertaneja. São Paulo: Brasiliense, 1982
_________________. Acorde na aurora: música sertaneja e indústria cultural. São Paulo: Ed. Nacional, 1979.
FROMM, Erich. Ser ou Ter?. Rio de Janeiro, Zahar, 1987
HELOANI, Roberto. Corações e Mentes: As novas formas de Autocoação. In: Gestão e organização no capitalismo globalizado: história da manipulação psicológica no mundo do trabalho. São Paulo: Editora Atlas, 2003, p. 105-153.
HARVEY, David. A Condição pós-moderna.  São Paulo: Loyola, 1992.
MARTINS, José de Souza. Capitalismo e tradicionalismo. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1975.
NEPOMUCENO, Rosa. Música caipira: da roça ao rodeio. São Paulo: Ed.34 & EDUSP, 1999.
SANTOS, Daniela Oliveira dos. Adolescentes e o Sertanejo Universitário: o gosto como uma atividade reflexiva. In: Anais do I Simpósio Brasileiro de Pós-Graduandos em Música. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2010, p. 157-163.
ULHÔA, Martha Tupinambá de. Música Sertaneja e Globalização. In: TORRES, Rodrigo (Ed). Música Popular en América Latina. Santiago, Chile: Fondart, Rama Latinoamericana IASPM, 1999, p. 47-60.
VIANA, Nildo. O dinheiro como valor fundamental. Goiânia, Revista Enfrentamento ano 7, n°12, ago/dez.2012
VIANA, Nildo. Os Valores na sociedade Moderna. Brasília: Thesaurus, 2007.
____________. O Regime de Acumulação Integral. In: O capitalismo na era da acumulação integral. São Paulo: Ideias & Letras, 2009, p. 41-93.
MUSICOGRAFIA:
MUNHOZ & MARIANO. Camaro Amarelo.







                                     




[1] Graduando em Ciências Sociais com habilitação em políticas públicas pela Universidade Federal de Goiás – UFG.
[2] Graduando em Ciências Sociais com habilitação em políticas públicas e monitor da disciplina de Antropologia na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás – UFG.
[3]  Podemos entender o mais-valor relativo como a ampliação da produtvidade física do trabalho por meio da mecanização.
[4] No sistema Just In Case a produção era em massa.
[5] O conceito de Ideologia que está sendo utilizado aqui é o mesmo conceito utilizado por Marx, ou seja, Ideologia como falsa consciência sistematizada.
[6] Definição dada por Antonio Candido, que exprime “um tipo social e cultural, indicando o que é, no Brasil, o universo das culturas tradicionais do homem do campo; as que resultam do ajustamento do colonizador português ao Novo Mundo, seja por transferência e modificação dos traços da cultura original, seja em virtude do contacto com o aborígene” (Candido, 1971)
[7] Ideologia como falsa consciência sistematizada, para utilizar a terminologia de Marx.
[8] Crowley Brodcast Analysis é uma empresa que faz a monitoração em rádios, para informações musicais e de veiculação publicitária.  Outro elemento que demonstra sua importância para o capital fonográfico  é que ela fornece, desde 2009, as paradas para a revista Billboard Brasil que se baseia na grade-básica de rádios com mais de 350 emissoras.

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http://www.saps.com.br/sites/estacio/downloads/revista/revista08_humanas-14.pdf

Nildo Viana e a Formação do Gosto Musical

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

Faculdade de Educação - Departamento de Estudos Básicos

Disciplina: EDU01016 - Projetos de Aprendizagem em Ambientes Digitais - Turma B

Professor: Crediné Silva de Menezes

 Alunos: Filipi Santos Correa e Rafaella da Silva Barros


UMA INDAGAÇÃO SOBRE GOSTO MUSICAL

            Sendo fomentados a pensar em uma questão a ser refletida e, a partir dela, desenvolver um projeto de aprendizagem conjunta em ambientes digitais, tivemos nossos interesses voltados para o mesmo assunto, uma indagação a respeito do gosto musical. Nosso ponto de partida para a reflexão desta temática contituiu-se em nos perguntar se o gosto musical seria um fator de distinção social. Nossa certeza provisória a respeito da questão era a de que o gosto musical consistia em ser um fator, mas não o único, de aproximação e de relação interpessoais, ou seja, algo de influência sobre as relações sociais. Nesse sentido, nossa dúvida temporária com relação à questão era se esse mesmo gosto musical, que aproxima pessoas por suas preferências, seria prédeterminado por uma espécie de "determinismo social", isto é, se o gosto musical consistiria em ser um fator de distinção de grupos sociais. A partir daí, nossa questão passou a ser desenvolvida como projeto de aprendizagem, e nos empenhamos em sair da reflexão pura, partindo para a busca de respostas em diferentes meios.

            Encontramos na leitura de Nildo Viana, doutor em Sociologia pela UnB, uma das respostas à nossa dúvida temporária. Diz ele em seu artigo O Capital Fonográfico e a Formação do Gosto Musical:

"[...] o gosto dos indivíduos é formado socialmente, mas como os indivíduos possuem uma singularidade psíquica, uma história de vida única, então as chamadas idiossincrasias são elementos diferenciadores na constituição do gosto. No caso do gosto musical, deixando de lado as diferenças individuais, que existem, mas que não são coisas metafísicas, são elas mesmas produtos sociais, é possível entender a sua formação num nível mais geral, no caso dos grupos sociais. Pensar no gosto musical da população é algo problemático, tendo em vista que não há homogeneidade neste gosto. Neste sentido, é interessante perceber que o gosto musical é composto por diversas camadas que expressam um grupo social ou diversos grupos/classes sociais".

            Nesta leitura, Nildo Viana faz uma distinção entre o gosto musical e o gosto em si. Neste, ele reconhece as diferenças individuais como elementos diferenciadores na sua constituição. Naquele, considera já as diferenças individuais como produtos sociais, o que o leva a entender o gosto musical como expressão de um grupo social. Sob este viés, nossa dúvida temporária em relação ao gosto musical prédeterminado se encaminha para uma afirmação, que se estende para a questão de nosso projeto. Ou seja, com esta leitura seria possível afirmar que o gosto musical é um fator de distinção social.

            Como trata-se de um projeto de aprendizagem em ambientes digitais, criamos uma enquete na rede social  facebook para termos acesso às respostas de diferentes pessoas sobre essa mesma questão. Analisando as respostas, encontramos uma diferente perspectiva daquela apresentada por Nildo Viana. Quarenta por cento dos participantes da enquete responderam que não consideram o gosto musical um fator de distinção social, ao que trinta por cento responderam ter dúvidas. Assim sendo, nossa dúvida temporária resolve-se com o entendimento de um gosto musical não-prédeterminado. Para utilizar os termos de Nildo Viana, entende-se aqui que as diferenças individuais sobressaem o determinismo social também na constituição do gosto musical.

            Em ambas as perspectivas foi possível confirmar nossa certeza provisória. Na leitura de Nildo Viana ela se confirma ao considerar o gosto musical um fator de influência nas relações sociais. O que acontece aqui é um enfoque nessa característica, que culmina no pensamento do gosto musical como expressão das diferentes classes sociais, deixando de lado as idiossincrasias. Já com base nas respostas da enquete, nossa certeza se confirma ao considerar o gosto musical como apenas um dos fatores dessa influência. Aqui se leva em conta as diferenças individuais na formação do gosto musical.

            Tendo em vista as duas perspectivas, o gosto musical pode ser entendido não como um fator de distinção social, mas talvez como um fator da distinção social. Isto é, se partirmos da leitura feita por Nildo Viana entenderemos o gosto musical como expressão de grupos sociais; preferências musicais distintas são encontradas dentro desses grupos, mas não servem para determiná-los ou para limitar que gosto musical seus indivíduos podem ter. Nesse sentido, mesmo que preferências musicais distintas sejam encontradas dentro dos grupos, as diferenças individuais prevalecem e são relevantes na constituição do gosto musical, o que vai relaciona-se com as respostas dos internautas.


            Desse modo, é possível pensar nos contextos reais em que diferentes gostos musicais são encontrados dentro de um mesmo grupo social, ou seja, contextos em que há a aproximação com o diferente. Tal aproximação acontece de forma positiva e contribui para o enriquecimento cultural dos indivíduos.


terça-feira, 22 de setembro de 2015

O Capital Fonográfico e a Formação do Gosto Musical




O CAPITAL FONOGRÁFICO E A FORMAÇÃO DO GOSTO MUSICAL

Nildo Viana*

A formação do gosto musical é algo pouco discutido teoricamente e nas ciências humanas. O processo de formação do gosto é social e não individual, tese que só seria defensável no mundo das ideologias. Obviamente que tais ideologias existiram e ainda continuam existindo. Aqui vamos trabalhar com a formação social do gosto musical e do papel do capital fonográfico na sua constituição[1], o que nos leva a discutir inúmeras outras questões, como valores, gostos distintos e grupos sociais distintos, entre outros.

O gosto, em geral, pode ser pensado sob duas formas: o espontâneo e o refletido[2]. O gosto espontâneo é aquele no qual os indivíduos desenvolvem sem maiores reflexões, por familiaridade, acessibilidade, compartilhamento social. O gosto refletido é aquele no qual os indivíduos se informam, relacionam com outros aspectos da vida social, usa os valores fundamentais como critério para suas escolhas, etc. Obviamente que no gosto espontâneo, o preconceito, as idiossincrasias e outras determinações também atuam, mas sem um processo reflexivo. No caso do gosto refletido, essas determinações também atuam, mas geralmente sob a forma racionalizada. No caso do gosto musical, esse processo se manifesta da mesma forma.

Nesse sentido, o gosto dos indivíduos é formado socialmente, mas como os indivíduos possuem uma singularidade psíquica (VIANA, 2011a; VIANA, 2013), uma história de vida única, então as chamadas idiossincrasias são elementos diferenciadores na constituição do gosto. No caso do gosto musical, deixando de lado as diferenças individuais, que existem, mas que não são coisas metafísicas, são elas mesmas produtos sociais, é possível entender a sua formação num nível mais geral, no caso dos grupos sociais. Pensar no gosto musical da população é algo problemático, tendo em vista que não há homogeneidade neste gosto. Neste sentido, é interessante perceber que o gosto musical é composto por diversas camadas que expressam um grupo social ou diversos grupos/classes sociais.

Assim, podemos realizar algumas divisões para analisar o gosto musical, sendo a principal divisão entre grande público, composto pelas classes exploradas e dominadas em geral (proletariado, lumpemproletariado, campesinato, pequenos proprietários, subalternos, etc.) e setores menos privilegiados das classes privilegiadas[3], bem como setores destas interessados ou oriundos das classes exploradas[4] e público intelectualizado, composto por indivíduos das classes privilegiadas e por indivíduos das classes exploradas que conseguem uma determinada escolarização ou formação intelectual. O que predomina, no primeiro caso, é o gosto musical espontâneo e, no segundo, o refletido.

No entanto, é possível perceber subdivisões nos dois casos. No caso do grande público, a subdivisão ocorre mais em casos regionais (no caso brasileiro, existem variações ligadas a estado, cidade, bairros de regiões metropolitanas, etc.), ação do capital fonográfico em determinados setores da sociedade (classes, grupos, etc.), etc. Assim, no interior de São Paulo e de Goiás, a música sertaneja[5] sempre teve os seus aficionados, enquanto que no Pernambuco há aqueles que preferem o frevo e no Rio de Janeiro o samba tem um público permanente.

No caso do público intelectualizado, há o gosto musical dos especialistas (músicos, compositores, etc.), ou seja, da subesfera musical[6], bem como daqueles que compartilham tal gosto por sua influência e legitimidade socialmente conquistada, o que geralmente é dominante na sociedade neste setor. O critério fundamental nessa subesfera é a técnica e a forma. A música clássica é o exemplo maior nesse caso, mas que se reproduz, com diferenças, no interior da música popular também. Acontece que nesse público se forma outros gostos musicais, muitas vezes compartilhando suas preferências, outras vezes recusando e elaborando outros critérios para definição do que é considerado bom. No caso, os valores dominantes da subesfera musical apontam para a técnica e a forma, a tradição musical, etc. enquanto que alguns setores intelectualizados vão, partindo de outros valores, erigir outros critérios de qualidade musical, tais como a crítica social, o vínculo com as raízes histórico-culturais, o nacionalismo, etc. Algumas “facções”[7] são constituídas também. Esse é o caso de grupos de indivíduos que elegem determinadas preferências a partir de grupos unificados por um estilo de vida (punks, emos, etc.), por relações de amizade, por compartilhamento de gostos, etc. Além de grupos mais restritos, de gosto unificado e delimitado a um gênero, banda, cantor, etc., há outros mais amplos, que possuem gosto unificado, mas que vai além de um gênero ou outro elemento, embora sejam mais frágeis e cujo elemento unificador é mais a amizade que gera compartilhamento e reprodução de um mesmo gosto musical (seja um conjunto de músicas, gêneros, cantores, ou critérios de julgamento e formação de gosto).

Em síntese, o gosto musical é distinto no interior da população e podemos pensar em dois grandes blocos, o do grande público, que constitui a maioria da população, e o público intelectualizado, composto principalmente pelos indivíduos das classes privilegiadas. Existe uma subdivisão no interior destes grupos e, inclusive, certos setores que são “intermediários”, tal como parte da juventude pertencente às classes desprivilegiadas, que possuem um gosto que muitas vezes diverge do gosto dominante nestas, devido ao vínculo com outros jovens (de outras classes, através dos meios oligopolistas de comunicação, etc.). Nesse caso, alguns mesclam o gosto dominante do grande público com o do público intelectualizado, outros aderem a este e abandona o primeiro. Despois dessa breve análise da distribuição social do gosto musical, podemos discutir o papel do capital fonográfico na sua formação.

O Capital Fonográfico e a Formação do Gosto Dominante

O capital fonográfico é constituído pelas gravadoras de música, grandes empresas que com seu desenvolvimento se tornaram oligopolistas. O capital fonográfico oligopolista mundial conta com grandes gravadoras como a Universal, EMI, Sony, Warner, Indie Recors, entre diversas outras, que são as mais importantes também no mercado brasileiro, contando com algumas empresas oligopolistas brasileiras, como a Eldorado e Som Livre. O capital fonográfico oligopolista tem toda uma estrutura de produção, distribuição e divulgação articulada com outros setores do capital comunicacional (“indústria cultural”), tais como redes de televisão, emissoras de rádio, imprensa, etc. e com o capital comercial, tal como grandes distribuidoras, lojas, etc. Nesse contexto, o grande capital fonográfico não somente tem uma capacidade de produção muito mais elevada que o pequeno capital, como também tem uma estrutura de divulgação e distribuição muito superior e acaba sendo um das principais determinações da formação do gosto dominante do grande público e, em menor grau, do público intelectualizado.

Esse processo se realiza através do processo de gravação, já que o capital fonográfico seleciona o que vai gravar e, portanto, escolhe os músicos, gêneros, cantores, bem como influencia no processo de gravação. Além disso, uma vez que o cantor ou cantora, banda, etc., pretende ter sucesso, há a busca em se adequar à dinâmica do capital fonográfico (o que significa se adequar às suas exigências) e do capital comunicacional (inclusive alguns sem perceber, mas querendo o sucesso, produz aquilo que está sendo divulgado e aceito pelo grande público – ou, em alguns casos, pelo público intelectualizado). Ao selecionar o que é produzido em matéria de música, oferece um universo de escolhas limitadas e ao privilegiar e gravar uma maior quantidade de determinado tipo de música, torna o processo de escolha por parte do público ainda mais limitado.

A sua influência também se manifesta no seu poder de distribuição e divulgação, através do capital comercial e outros setores do capital comunicacional. A televisão e o rádio assumem um papel fundamental nesse processo (sendo reforçado por outros). A quantidade de músicas gravadas é muito maior do que a de músicas conhecidas pelo público. Isso se deve ao fato de que as antigos Long Plays (LPs) ou os atuais Compact Discs (CDs) possuem uma quantidade determinada de músicas, geralmente dez, mas são divulgados uma ou duas músicas, e apenas no casos dos cantores já consagrados um número maior. A escolha de quais faixas serão divulgadas e terão primazia no disco também é determinada pelo capital fonográfico. O capital fonográfico usa seus critérios para realizar tais escolhas e estes interferem tanto no conteúdo da música (mensagem) quanto na forma (melodia, arranjo, interpretação, etc.). Por conseguinte, não se espera de uma dupla sertaneja nada além da interpretação tradicional (a não ser que se crie um “derivado” com diferenciação, tal como o chamado “sertanejo universitário”), e o que se quer são refrãos repetitivos e coisas que supostamente seriam do gosto popular, que, contudo, é o gosto dominante imposto pelo capital fonográfico que se reproduz na população, tornando-se “popular”. Nesse sentido, a produção de músicas triviais é a preferência do capital fonográfico, por ser uma fórmula mais fácil de sucesso e isso reforça tal preferência como gosto dominante no grande público. As emissoras de rádio são influenciadas pelo capital fonográfico e, além disso, muitas delas pertencem a eles ou fazem parte de algum aglomerado do capital comunicacional, contando com gravadora, emissoras de rádio e TV[8].

A presença das músicas na televisão é outra fonte de popularidade. A Rede Globo, devido sua audiência, que em outras épocas foi maior, exercia uma forte influência na produção dos sucessos, com as trilhas sonoras de novelas, programas musicais que existiram ou ainda existem (Globo de Ouro, Cassino do Chacrinha, Domingão do Faustão, Fantástico, etc.). As outras redes de TV, algumas inclusive possuem público específico e menos exigente, realizam processo semelhante e colocam em evidência cantores e músicas de pior qualidade ainda, tal como nos programas de Silvio Santos e semelhantes, bem como as redes “educativas”, que possuem um público telespectador muito menor (TV Cultura, por exemplo), que trabalham geralmente com músicas complexas, atendendo ao gosto musical do público intelectualizado.

A força do capital fonográfico se manifesta quando ele resolve emplacar um produto, pois nem todos recebem a mesma atenção, inclusive em sua ação sobre as emissoras de rádio. O caso dos Beatles nos anos 1960, citado por Jambeiro (1975, p. 8) apenas exemplifica esse processo:
         A criação de um ídolo para o público, no que se refere às gravadoras é a mais agressiva possível e bastante comercial. Quando do lançamento dos Beatles no Brasil, por exemplo, a gravadora que os lançou chegou ao ponto de conseguir de todas as rádios que tocassem, num determinado dia, às 9 horas da manhã, todas juntas, somente o disco de lançamento dos Beatles. Ao mesmo tempo, todas as lojas de disco, nas mesmas cidades, faziam a mesma coisa, o que inundou os ouvidos de grande parte da população brasileira com o som do ruidoso conjunto.
Capital Fonográfico e Grande Público

Essa ação tem uma eficácia enorme principalmente junto ao grande público. A razão disto é que, como colocamos anteriormente, o seu gosto é mais espontâneo e, por conseguinte, mais influenciável pela repetição, familiaridade, clima social, simplicidade, etc. e, portanto, mais próximo da música trivial. A influência do capital fonográfico sobre outros setores do capital comunicacional (rádios, TVs, revistas, jornais, etc.) criam um processo marcado pela repetição das mesmas músicas, criando um clima social de que tais músicas são as da moda e que a maioria gosta, o que é reforçado pela familiaridade e simplicidade das mesmas, uma exigência das gravadoras para sua seleção, pois o grande público adere mais facilmente a tais formas musicais. Os modismos e a fabricação de ídolos são algumas das estratégias mais utilizadas pelo capital fonográfico.

A criação de modismos emerge com o Rock and Roll, que era uma moda voltada principalmente para o público jovem em geral[9]. O que existia antes eram produções musicais para públicos específicos e canções populares para o grande público, mas sem uma renovação rápida, o que passa a ser presente com as mudanças do capitalismo no pós-segunda guerra mundial, com a formação do regime de acumulação conjugado, que em suas interpretações ideológicas ficou conhecido como “sociedade de consumo”. Esse processo foi avançando com o tempo. Os modismos criam um vínculo geracional, pois ele atinge principalmente a juventude. Esse foi o caso da música disco no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, no qual tal gênero musical era importado dos Estados Unidos e tinha seus copiadores nacionais, sendo inclusive tema de novela da Rede Globo, Dancin’ Days. A referida novela teve forte impacto, pois a disco music aparecia constantemente não só na trilha sonora, mas na própria temática da novela, com diversas cenas em discotecas (época das mesmas e das matinês para crianças), no seu título e música de abertura, cantada pelo grupo As Frenéticas. A trilha sonora internacional trazia várias músicas do gênero e a nacional tinha até a roqueira Rita Lee entrando na moda, mas de forma irônica, o título da música era “Agora é moda”.

A fabricação de ídolos é outra estratégia do capital fonográfico. No caso brasileiro, isso ocorre desde Carmem Miranda e as “grandes vozes” (Silvio Caldas, Vicente Celestino, Francisco Alves, etc.), mas o processo de criação de ídolos se torna muito mais eficaz após 1945, especialmente nos anos 1950 e 1960. Elvis Presley foi o primeiro grande exemplo e The Beatles foi o segundo. Elvis Presley era um produto direcionado para um novo e amplo mercado consumidor, a juventude[10], e por isso a dança frenética, a irreverência e rebeldia foram elementos utilizados, ao lado do uso expressivo de outros setores do capital comunicacional, especialmente o cinema, já que este cantor estrelou diversos filmes, aliado com outras estratégias, como grandes shows, televisão, etc. Já o caso de The Beatles mantinha muitas semelhanças, bem como diferenças. Apesar das diferenças, tais como o capital comunicacional estar muito mais desenvolvido e o quarteto ser inglês, o sucesso também foi estrondoso e o capital fonográfico teve um papel fundamental.

No caso brasileiro, o maior exemplo é a cópia brasileira do rock norte-americano com a chamada “Jovem Guarda” e, principalmente, Roberto Carlos. Obviamente que num contexto marcado pela oposição entre bossa nova, por um lado, e a canção de protesto, por outro, a emergência da Jovem Guarda, e também do tropicalismo, aumenta a variedade e marca um processo de substituição, pois os últimos acabam superando os primeiros. A música trivial, mais adequada ao gosto espontâneo, ganha espaço nesse contexto e Roberto Carlos é escolhido para ser o grande ídolo fabricado brasileiro, uma experiência do tipo Elvis Presley, mas sem a voz, estilo, entre outras características, do mesmo. A escolha foi péssima, pois a voz de Roberto Carlos é horrível e sua irreverência se limitou a algumas músicas bem simplistas (tipo “Calhambeque”; “Splish, Splash” e “Pega Ladrão”), sem falar de que o rock (dele e da Jovem Guarda) era risível.

A fabricação de Roberto Carlos como ídolo seguiu a fórmula de Elvis Presley, que ficou conhecido como “Rei do Rock”. Em programa de TV, na Rede Tupi, no início de sua carreira, Roberto Carlos era apresentado como “Elvis Brasileiro”. A ideia de transformá-lo em “rei” tem essa origem e acabou sendo reproduzido por muitos, em que pese apesar de suas vendagens expressivas, sempre teve um público bastante oposto a ele, e por razões bens distintas da oposição a Elvis Presley, pois este era acusado de cantar música negra, entre outras questões sociais, enquanto que o problema de Roberto Carlos era geralmente a má qualidade de suas músicas e/ou seu conservadorismo político, expresso em suas letras de músicas (inexpressivas e que não saiam do romantismo brega) e outras práticas concretas, tal como no seu show no Chile onde agradece ao ditador Augusto Pinochet e sua relação amistosa – e segundo alguns documentos, “colaboração” – com o regime militar. No entanto, o programa de TV da “Jovem Guarda” (TV Record, 1965-1968), apresentado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa, era uma fórmula que deu resultados, inclusive maiores do que dos seus concorrentes[11].

Desta forma, o gosto dominante do grande público é formado principalmente pelo capital fonográfico aliado aos demais setores do capital comunicacional. Obviamente que existem outras determinações que ultrapassam a força do capital fonográfico. Muitos indivíduos do grande público têm acesso ao que é produzido para o público especializado e alguns mudam ou mesclam suas preferências anteriores com as novas oriundas desse contato. O sentimento nostálgico, de músicas do passado que relembram acontecimentos, sentimentos, etc., também é uma determinação mais individual e ligada à história do indivíduo[12], bem como seus contatos sociais e informações sobre música e sociedade. As músicas também podem despertar sentimentos e ao fazê-lo também promove o gosto por ela. Os jovens e os que pretendem trabalhar no ramo musical, oriundo do que foi chamado “grande público”, também se aproximam do gosto do público intelectualizado, seja parcialmente ou de forma mais ampla. A época e as ressonâncias das lutas sociais, os valores de cada grupo ou indivíduo dentro do grande público, a formação intelectual, entre diversos outras determinações, além das divisões já aludidas, tal como as regionais, dificulta o reino absoluto do capital fonográfico. Isto sem esquecer os equívocos que os responsáveis pelo capital fonográfico podem cometer, tal como a tentativa frustrada de retomada da bossa nova após o fim do boom do rock brasileiro em meados dos anos 1990, forçando inclusive roqueiros a produzir músicas nesse gênero (Rita Lee, Lobão, Lulu Santos, etc.), o que foi um fracasso.

Capital Fonográfico e Público Intelectualizado

O capital fonográfico e seus aliados do capital comunicacional também atua sobre o público intelectualizado. Nesse caso, a influência é menor e os agentes da subesfera musical acabam sendo fortes influências nas ações do capital fonográfico. Contudo, os interesses dos artistas venais ligados diretamente ao capital comunicacional e dos outros, ligados às estruturas de produção e reprodução do capital fonográfico, provoca em vários setores (compostos por aqueles que são hegemônicos e estabelecidos na subesfera musical) a política de “boa vizinhança” com os mais comerciais. É por isso que poucos entraram em confronto com Roberto Carlos, por exemplo, tal como o fez Sérgio Sampaio em sua música “Meu Pobre Blues” ou, recentemente, Caetano Veloso, no caso mais específico a respeito da questão das biografias não-autorizadas. No caso da música sertaneja, não deixa de ser engraçado como Lulu Santos fez a crítica e depois voltou atrás, embora Guilherme Arantes, agora em 2013, criticou e até agora não se arrependeu.

O público intelectualizado é mais dividido do que o grande público. Alguns preferem música clássica, outros MPB, Jazz, etc. Entre os mais jovens, o Rock ainda ocupa grande espaço, bem como surgem facções com variados gostos musicais, formado desde por fã clubes até grupos caracterizados por estilo de vida, sem falar nos saudosistas que formam grupos de gosto referentes às músicas mais antigas (por cantor, época, gênero, etc.). Esse processo de diferenciação tem a ver com a classe social, frações de classes, nível de formação intelectual, idade, geração, atividade profissional, até chegar às diferenças mais individuais, as mesmas que atuam também sobre o grande público. Mas como o gosto musical do público intelectualizado é mais refletido, então as músicas complexas são preferidas em relação às músicas triviais. Obviamente que as músicas complexas não possuem homogeneidade e seu nível de complexidade varia, bem como algumas músicas triviais[13] acabam conquistando também parcela do público intelectualizado, mas sendo mais comum as que se destacam ou possuem algum diferencial.

O público intelectualizado possui como determinação do seu gosto musical a racionalidade, o que gera critérios específicos para julgar, avaliar e gostar de músicas, de acordo com determinados valores. O hegemônico nesse público é o que a subesfera musical define como qualidade e o aspecto técnico-formal torna-se o fundamental. Esse formalismo e tecnicismo gera uma concepção elitista, o que é comum num setor de tal público. Até intelectuais renomados, como Theodor Adorno (2008), demonstram uma concepção elitista de música. Outros setores elegem como critério a criticidade das músicas, embora muitos de forma ambígua, usando-o apenas para justificar seu gosto geralmente irrefletido. No entanto, esse é um dos critérios do público intelectualizado e a ênfase, ao contrário da concepção elitista, recai é na mensagem, no conteúdo, e não na forma ou técnica. Para algumas concepções mais extremas, até mesmo a desqualificação da forma e técnica é realizada, como em algumas manifestações musicais e de gosto. Uma outra vertente já apresenta um conjunto de critérios por enfatizar a totalidade da música, embora colocando como essencial o conteúdo, ou seja, sua mensagem, de caráter crítico, no sentido de uma utopia concreta.

Por detrás de cada uma dessas preferências, se manifestam valores. No primeiro caso, revela-se um gosto axiológico, pautado nos valores dominantes, enquanto que nos demais revela-se um gosto axionômico, ou seja, fundado em valores autênticos[14]. Grupos mais restritos podem escolher gênero, cantor, banda, etc., e o critério, nesse caso, tem a ver com uma tradição criada pelo grupo (ou pelo capital fonográfico, região, etc.) ou fundada na história da música, etc., e os valores que motivam isso pode ser o nacionalismo, regionalismo, rebeldia, entre outros.

O capital fonográfico produz estratégias específicas para atingir tal público, sendo que o principal é o discurso da qualidade, aliado ao formalismo e tecnicismo, e muitas aliando isso com outros elementos, para criar uma ponte com o grande público. No entanto, o capital fonográfico elege públicos específicos e existem gravadoras especializadas em determinadas produções musicais, não só para o grande público, mas também para o público intelectualizado. Existem emissoras de rádio especializadas em Rock, Country, Jazz, MPB, etc., assim como para o grande público existem emissoras especializadas em sertanejo, “jovem” ou “pop”, etc. Da mesma forma, existem aquelas que querem atingir o maior número possível do público intelectualizado, sendo, portanto, ecléticas ou priorizando a suposta qualidade, expresso no formalismo/tecnicismo.

Contudo, esse público intelectualizado que escolhe seu gosto musical de forma racionalizada, nem sempre o faz através de amplas reflexões. Muitos conhecem muito pouco de história da música, gêneros, técnica, sentimentos ou emoções despertados, etc., e geralmente seguem as opiniões surgidas de supostas “autoridades” no assunto (seja os agentes da subesfera musical, seja indivíduos que fazem discurso sobre qualidade ou técnica nos meios oligopolistas de comunicação), sendo que ambos são acessíveis principalmente através do capital comunicacional (jornais, revistas, rádio, TV e, em menor grau, livros), embora uma parte seja nas instituições de ensino (universidades, por exemplo) ou mesmo amizades consideradas “cults” ou entendidos no assunto. A razão para tal incorporação de gosto musical remete aos valores dominantes e a necessidade de “distinção”, para usar termo de Bourdieu (2007). Ou seja, na competição social, algo estrutural da sociedade capitalista (VIANA, 2008), algumas pessoas querem se destacar e vencer e uma das formas de conseguir isso é mostrando superioridade intelectual, o que pode ser demonstrado por possuir um gosto pautado numa suposta “qualidade”, em saber técnico, em opinião de pessoas cultas ou especializadas[15]. Contudo, a aparência de inteligência revela, na essência, a ignorância.

Considerações Finais

O gosto musical individual é constituído socialmente, seja ele qual for. Mesmo o setor mais refletido do gosto musical do público intelectualizado tem sua formação social. O gosto musical manifesta valores incorporados, tal com a técnica, a crítica, a tradição, a nação, a região, a voz, a interpretação, a letra, a melodia, o gênero, emoções ou sentimentos despertados, etc. e isso vale para o mais complexo e “refinado”. Por isso, nada mais ilusório do que aqueles indivíduos que não fazem autorreflexão e autocrítica sobre seu gosto (musical e qualquer outro), julgando que ele é uma mônada, um mundo isolado, autossuficiente e autoproduzido e, pior ainda, que é superior e indiscutível. Inclusive essa última pretensão é mais um produto da competição social e da mentalidade burguesa (VIANA, 2008).

Da mesma forma, recusar a influência do capital fonográfico no gosto individual é ilusório, pois o que varia é o seu grau. Outro problema é o relativismo, ao considerar que todo gosto musical é equivalente, pois eles manifestam interesses, valores, representações, sentimentos, etc., que são expressões de distintas perspectivas de classe e, por conseguinte, não são neutras e nem equivalentes, servem para objetivos e projetos distintos, desde aquele que é fascista até o que é expressão da luta pela emancipação humana, aqueles que servem para entorpecer e os que servem para desenvolver a consciência.

O gosto musical, portanto, deve ser compreendido e analisado não para promover o seu domínio pela razão instrumental, o que seria querer generalizar a preferência de parte do público intelectualizado. O tecnicismo e o formalismo são as bases de um elitismo tão pobre e torpe quanto qualquer concepção conservadora. A música é uma totalidade e sua qualidade só pode ser avaliada levando isso em consideração (VIANA, 2007), bem como entendendo que o seu conteúdo é o essencial e elemento principal de avaliação, embora não único. Uma música que passa uma mensagem excelente, com teor crítico e elaborado, mas sua forma (interpretação, arranjo, melodia, etc.) é mal elaborada, é, comparativamente, inferior em qualidade a uma outra que tanto conteúdo quanto forma são bem estruturadas.

Por fim, é fundamental entender que o gosto musical é formado socialmente e que o capital fonográfico tem um papel importante em sua formação. Os indivíduos precisam ter consciência de que seu gosto musical não é natural, que brotou em sua cabeça a partir do nada, de algo inato ou de algo metafísico como um “mundo interior” de caráter místico. O desejo de liberdade não deve promover a confusão entre o ideal e o real. A ilusão de liberdade é um reforço para a reprodução da falta de liberdade e o reconhecimento da não-liberdade é um primeiro passo para sua realização.


Referências

ADORNO, Theodor. Escritos Musicales IV. Madrid: Akal, 2008.

BOURDIEU, Pierre. A Distinção. Porto Alegre: Zouk, 2007.

BOURDIEU, Pierre. Gostos de Classe e Estilo de Vida. In: ORTIZ, Renato (org.). Bourdieu. São Paulo: Ática, 1994.

DIAS, Marcia Tosta. Os Donos da Voz. Indústria Fonográfica Brasileira e Mundialização da Cultura. São Paulo: Boitempo, 2000.

JAMBEIRO, Othon. Canção de Massa – As Condições da Produção. São Paulo, Pioneira, 1975.

VIANA, Nildo. A Dinâmica da Violência Juvenil. São Paulo: Ar Editora, 2014a.

VIANA, Nildo. A Esfera Artística. Marx, Weber, Bourdieu e a Sociologia da Arte. 2ª edição, Porto Alegre: Zouk, 2011b.

VIANA, Nildo. Introdução à Sociologia. 2ª edição, Belo Horizonte: Autêntica, 2011a.

VIANA, Nildo. Juventude e Sociedade. No prelo. 2014b

VIANA, Nildo. O Papel do Indivíduo na História. Cadernos de História. Belo Horizonte/PUC-MG, 2013.

VIANA, Nildo. Os Valores na Sociedade Moderna. Brasília, Thesaurus, 2007a.

VIANA, Nildo. Para Além da Crítica dos Meios de Comunicação. In: VIANA, Nildo (org.). Indústria Cultural e Cultura Mercantil. Rio de Janeiro: Corifeu, 2009.

VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo: Escuta, 2008.





* Professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás e Doutor em Sociologia/UnB.

[1] Não vamos discutir aqui de forma aprofundada o conceito de capital fonográfico ou o conceito de capital comunicacional. Para ficar compreensível o que queremos dizer entenda-se pelo primeiro termo o que comumente se chama de “indústria fonográfica” e pelo segundo “indústria cultural”, apesar das diferenças de concepções e, por conseguinte, de terminologia. Sobre “indústria fonográfica” existe uma certa bibliografia, com destaque para Dias (2000) e sobre capital comunicacional é possível consultar Viana (2009).

[2] Não há espaço para uma discussão sobre as diversas definições e concepções de gosto. Aqui apenas esclarecemos que em nossa perspectiva gosto significa disposição afetiva favorável a um ser, objeto, pessoa, obra de arte, etc. Nesse sentido, o gosto tem elementos sentimentais e racionais, sendo que em alguns casos o peso maior é dos sentimentos e no segundo da razão. O gosto musical, portanto, é a disposição afetiva favorável a determinadas músicas, cantores ou cantoras, bandas, gêneros, etc.

[3] As classes privilegiadas são a burguesia e suas classes auxiliares, especialmente a burocracia e a intelectualidade.

[4] Os setores interessados são aqueles que produzem ou ganha com determinada produção musical, como é o caso dos cantores de música trivial (“brega” e músicas simples em geral). No segundo caso, temos, como exemplo, os “novos ricos” ou pessoas oriundas das classes exploradas que conseguem uma ascensão social (sob as mais variadas formas, desde o sucesso inesperado em algum programa televisivo, tal como um Reality Show, passando pela sorte na loteria ou por processos sociais mais amplos que permitem ascensão de um contingente maior de pessoas). Em ambos os casos, os indivíduos mudam de classe social, mas não possuem a cultura da classe a qual passam a pertencer, mantendo sua cultura anterior, mesmo que mesclando alguns aspectos.

[5] Nada mais falso do que a ideia de Goiânia é uma cidade que tradicionalmente tinha vínculo com música sertaneja. Isso foi um produto do capital comunicacional a partir dos anos 1980, que, graças a sua ação acabou influenciando o gosto musical de parte da população, inclusive muitos que explicitamente não gostavam deste tipo de música.

[6] A esfera artística, assim como as demais, pode ser dividida em subesferas, e no seu caso, há a subesfera musical, teatral, literária, quadrinística, etc.

[7] Ao invés de usar termos como “tribos” ou “guetos”, preferimos “facções”, retirando-lhe o sentido militar ou pejorativo. As facções são grupos informais reunidos em torno de uma causa, estilo de vida, valores, gostos, posições políticas, crenças religiosas, etc. O termo tribo é descontextualizado, pois é manifestação das sociedades tribais e sua adaptação ao caso da sociedade moderna é problemática, assim como gueto, esse último para tratar dos grupos que abordamos aqui.

[8] O caso mais conhecido e famoso é o das organizações globo (e suas reprodutoras regionais, embora poucas possuam gravadoras), que além da Rede de TV, emissoras de rádio, jornais, editora, também possui a gravadora Som Livre, responsável pelas trilhas sonoras das suas novelas. A maior gravadora brasileira, a Eldorado, é do Grupo Estadão.

[9] Claro que isso não se refere ao Rock como um todo e nem em relação aos seus produtores mais críticos, mas o foco aqui é o capital fonográfico e este que possibilitou a explosão desse gênero musical e sob esta forma.

[10] A juventude é um grupo social constituído na sociedade capitalista (VIANA, 2014a) e tem como uma de suas características atribuídas à rebeldia (VIANA, 2014a; VIANA, 2014b) e o rock, com sua irreverência, crítica ou ironia, dependendo da época, banda, etc. acaba sendo a forma ideal de música para tal grupo.

[11] Na época havia o programa dos representantes da bossa nova, O Fino da Bossa (TV Record, 1965-1967), apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues, que acabou perdendo espaço para eles, bem como, na sequência, o programa dos representantes da Tropicália, Gilberto Gil e Caetano Veloso, Divino Maravilhoso (TV Tupi, outubro-dezembro de 1968, pois o programa foi cancelado devido exílio dos apresentadores pelo regime militar), entre outros.

[12] É um caso individual que afeta aos indivíduos em geral, sob formas e com intensidades diferentes. O capital fonográfico também se aproveita disso, tal como se pode perceber no lançamento (e sucesso) de Stars On 45, fazendo medley ou pout pourri, ou seja, mistura de músicas selecionadas de um cantor/a, banda, estilo, etc. O Stars On 45 fez medleys dos Beatles, Bee Gees, Aba, Boney M, Disco Music, músicas dos anos 1970 e dos anos 1980, entre outros. Mas o capital fonográfico ganha mais hoje com o avanço tecnológico que permite a aquisição de músicas antigas e permite grandes vendagens, tal como ocorre com as músicas dos anos 1960. 1970 e, principalmente, 1980 e os diversos CDs lançados com coletâneas desse período demonstra isso. Obviamente que isso tem a ver com a perda de qualidade e sucessão mais rápida dos modismos realizada pelo capital fonográfico e o desagrado do público de gerações anteriores.

[13] As músicas triviais são aquelas que são mais simples, seja nas letras, melodias, arranjos, interpretação, geralmente em mais de um desses elementos simultâneos. Não se deve confundir músicas triviais com músicas “cafonas” (termo usado na década de 1970 e generalizado pela novela com o nome “Cafona”), ou “bregas” (termo utilizado a partir do início dos anos 1980 e popularizado pela Rede Globo principalmente via sua novela, “Brega Chique”, de 1987), pois estas são músicas de determinado tipo, consideradas de “mau gosto”, seja devido a um romantismo simplório, obscenidade, exageros visuais, vocais, etc. As músicas complexas, como o nome já diz, são as que a complexidade é maior em seus elementos, seja em um ou vários (letra, melodia, arranjo, interpretação). Existem algumas músicas que ficam num plano intermediário. Algumas buscam mesclas intencionalmente, como Eduardo Dusek na MPB em algumas de suas produções, especialmente seu LP “Brega Chique” (1984). Em outros casos, é o espírito rebelde ou intenção crítica que gera isso, tal como no Punk Rock, onde elementos de músicas triviais (e até alguns que seriam considerados de música brega, tal como alguns trechos de música dos Garotos Podres, para citar apenas um exemplo) se encontram presentes. Não deixa de ser curioso o desdém de certos intelectuais pela música “cafona” ou “brega” apelando para a concepção de indústria cultural de Adorno, sem perceber que até as palavras que usam são produtos desta e que, portanto, não estão tão em oposição a ela como pensam.

[14] Sobre axiologia e axionomia, cf. Viana (2007), e a respeito dos critérios escolhidos para o gosto e o que se considera de qualidade, veja o capítulo “valores e qualidade”.

[15] Isso atinge até algumas pessoas das classes desprivilegiadas, mesmo que apenas formalmente, tal como no caso de um operário que diz gostar de música clássica apesar de não entendê-la, tal como se pode ver em pesquisa realizada por Bourdieu (1994).
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Publicado originalmente em:
http://redelp.net/revistas/index.php/rel/article/view/4viana17/142