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segunda-feira, 25 de julho de 2016

Música Sertaneja Universitária e valores dominantes: um estudo do discurso das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas

Música Sertaneja Universitária e valores dominantes: um estudo do discurso das canções e sua relação com os valores sociais capitalistas

                                                                                    Gabriel Teles Viana[1]
                         Felipe Mateus de Almeida[2]

Resumo: O presente artigo propõe refletir sobre a transmissão de valores dominantes (axiológicos) através das letras da música sertaneja universitária. Nesse sentido, far-se-á uma discussão sobre elementos que compreendemos como fundamentais para se analisar este fenômeno, quais sejam, a questão do regime de acumulação integral, valores, a história da música sertaneja, o vínculo com a totalidade das relações sociais e por fim, a análise de uma música sertaneja universitária com o objetivo de demonstrar seu caráter axiológico.
Palavras-chave: Música Sertaneja Universitária, Regime de Acumulação, Valores, Análise do discurso

Abstract: This article offers a reflection about the transmission of dominant values (axiologics) through lyrics of the new country music. Accordingly, will be made a discussion on what we understand as fundamental elements to analyze this phenomenon, which they are, the issue of accumulation values, the history of country music, the bond with the totality of social relations and finally, examination of the new country music in order to demonstrate its axiological character.
Keywords: new country music, accumulation, values, speech analysis

INTRODUÇÃO:
     Este trabalho se vincula principalmente a questão da produção cultural e a música sertaneja universitária. Pretendemos analisar os valores inseridos e reproduzidos pelo chamado “Sertanejo Universitário” através do discurso transmitido em suas letras e canções.
     Como objetivo geral, pretendemos apresentar uma análise crítica dos valores inseridos e reproduzidos pelo sertanejo universitário. Além disso, pretende-se fazer uma discussão teórica sobre os valores e sua produção social e apresentar uma reflexão sobre a relação entre música e sociedade.
      Inicialmente, será feita uma análise histórica sobre as transformações do modo de produção capitalista. Após isso, será feita uma análise das transformações ocorridas na música sertaneja a partir da reestruturação capitalista e do nascimento do chamado regime de acumulação integral (Viana, 2009) para que se possa compreender os valores que se tornaram dominantes na contemporaneidade e, consequentemente, se tornaram presentes no campo da produção cultural e musical.
AS TRANSFORMAÇÕES DO MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA
A crescente racionalização e reestruturação do modo de produção capitalista ocorrida com o surgimento do regime de acumulação toyotista e o enfraquecimento do regime de acumulação fordista e sua rigidez no processo de produção de mercadorias e nas demais estruturas existentes no capitalismo, trouxeram mudanças significativas.
O fordismo, o taylorismo e o toyotismo foram as três etapas do desenvolvimento capitalista que antecederam a revolução informacional de nossos tempos. Segundo Viana:
Taylor se preocupou com o tempo de trabalho e seu aproveitamento máximo. Surge assim a racionalização do processo de trabalho, e sua vigilância se torna mais profunda. O método elaborado por Taylor apresentava um controle do tempo de trabalho, que passa a ser cronometrado. Sem dúvida, o objetivo de Taylor é aumentar a produtividade do trabalho (o que é equivalente, na maioria dos casos, ao aumento de extração de mais-valor relativo) através de diversos artifícios, entre os quais o controle rígido do processo de trabalho, o uso do cronômetro, os prêmios por produtividade individual, o parcelamento das tarefas, a formação de especialistas em gerência, a divisão entre trabalho de elaboração e de execução etc (op.cit., 2009, pp. 65 e 66).
                O taylorismo possuía como características um regime rígido que priorizava a vigilância profunda nos ambientes de trabalho; a racionalização dos trabalhadores e dos ambientes de trabalho; possuía um caráter burocrático devido a criação dos cargos de gerentes científicos e, além disso, tinha uma produção centralizada e baseada no sistema Just In Case (JIC). O taylorismo foi o primeiro regime que se preocupou com a questão da extração do mais-valor relativo[3] e com a aplicação do processo científico a produção através do saber-fazer dos operários e dos especialistas encarregados, ou seja, havia uma hierarquia e uma burocracia nesse regime de acumulação.
            Desde o final dos anos 60 até o começo da década de 70, várias tentativas com o objetivo de deixar o espaço fabril mais atraente foram feitas para que os operários se interessassem mais pelo trabalho nas fábricas. Tais tentativas tinham como meta evitar o absenteísmo e os demais descontentamentos dos trabalhadores com o regime e o modo de regulação fordista do trabalho. Além disso, segundo Heloani (2003, p.105) “a cisão dogmática entre elaboração e execução, a fragmentação e consequente especialização exagerada (gerando insatisfação e alienação)”, fizeram com que se pensasse em uma mudança no modo de regulamentação e no regime de acumulação que vigorava no modo de produção capitalista.
            É nesse contexto que surge o modo de regulamentação/acumulação toyotista ou como alguns preferem chamá-lo, ohnista. Para Heloani o toyotismo pode ser caracterizado como uma:
(...)inovadora forma de produção, no lugar de gigantescas organizações verticalizadas, que produzem desde a matéria-prima até seus produtos finais, ocorre a descentralização do processo produtivo. Uma enorme rede constituída por pequenas empresas responsabiliza-se pelo fornecimento de peças e outros elementos para serem utilizados por núcleos centrais que dispõem da visão do conjunto e que geralmente possuem tecnologia avançada e grande poder de barganha com seus fornecedores (op.cit., 2003, p.119).
Nesse sentido, o toyotismo deve ser compreendido como um modo de regulamentação e organização da produção, das fábricas e do trabalho que possui como características a descentralização; a tecnologia avançada; o sistema Just In Time (JIT) e a flexibilização e integração das subjetividades dos trabalhadores, ou seja, ao contrário do taylorismo que tinha como base o sistema Just In Case (JIC)[4], o toyotismo trabalha com o sistema Just In Time(JIT); é um modelo onde a produção não é mais produzida em massa mas é produzida através da demanda por produtos.
Porém, o que diferenciou de maneira mais visível o taylorismo do toyotismo foi a questão da flexibilização e da integração das subjetividades dos trabalhadores ( Harvey, 2003; Heloani, 2003). Enquanto no taylorismo o modo de regulamentação do trabalho era mais rígido e fundamentado em ordens, hierarquia e burocracia, no toyotismo substituíram-se as ordens pelas regras, ou seja, foi disseminada uma ideologia que fazia o trabalhador pensar que era parte importante da empresa; que era um ser detentor de um poder de avaliar e concordar ou discordar das opiniões de seus superiores, de seus subordinados ou de seus companheiros de função. O trabalhador passou a acreditar em um discurso no qual a empresa era vista como uma matriarca que deveria sempre ser defendida e idolatrada ele ainda continuava a ser manipulado e vigiado, e além da parte racional (meios tecnológicos e informáticos), agora ele também era vítima de uma ideologia[5].
            Nesse sentido, podemos afirmar que ao contrário do que pensava David Harvey em seu livro “condição pós-moderna” onde defende a concepção de que vivemos em um regime de acumulação flexível, podemos afirmar – assim como pensa Viana (2009) – que vivemos em um regime de acumulação integral. Portanto, faz-se necessário uma breve discussão sobre esse debate entre regime de acumulação integral e regime de acumulação flexível para que se possa salientar a importância das transformações do modo de produção capitalista e sua relação com as transformações no campo da produção cultural.
REGIME DE ACUMULAÇÃO INTEGRAL OU REGIME DE ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL?
            Harvey em seu livro “Condição Pós-Moderna” faz uma discussão sobre taylorismo, fordismo e toyotismo e diz que o toyotismo pode ser caracterizado como um regime de acumulação flexível. Harvey recorre à linguagem da escola de regulamentação que pode ser entendida como uma escola que cria um modo de regulamentação que vai fazer com que haja uma materialização do regime de acumulação que toma a forma de hábitos, leis e redes que regulamentam e garantem a unidade e a consistência apropriada entre comportamentos individuais e o esquema de reprodução (Harvey, 2003).O autor conceitua a acumulação flexível como:
(...)um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional (Harvey, 2003, p.140).
A acumulação flexível pode ser compreendida então como um regime que cria uma flexibilização nos processos de trabalho criando novas maneiras de se fornecer os serviços financeiros e como uma acumulação que é responsável por uma nova inovação comercial, tecnológica e organizacional que transformou radicalmente as relações sociais de produção.
Nildo Viana em seu livro “O Capitalismo na era da Acumulação Integral” apresenta uma concepção diferente da concepção defendida por Harvey. Segundo Viana:
Ao se falar de “acumulação flexível”, “especialização flexível”, “flexibilização dos trabalhadores” e “aparato produtivo, vê-se que a palavra é utilizada em sentidos diferentes e inexatos. (...)não existe “flexibilização” do aparato produtivo e muito menos dos trabalhadores, o que existe é uma “inflexibilidade”, pois tanto o aparato produtivo quanto os trabalhadores são submetidos “inexoravelmente” e “implacavelmente” ao objetivo de aumentar a extração de mais-valor relativo. (op.cit., 2009, pp.69 a 70)
            Percebe-se com esta citação, o quanto a proposição de Viana é diferente e mais radical do que a de Harvey. Enquanto Harvey defende a ideia de que o atual regime cria uma flexibilização nos processos de trabalho, no aparato de produção, um relaxamento na disciplina fabril dos trabalhadores, Viana diz o contrário e defende a ideia de que existe um regime de acumulação integral que provoca uma extensão no processo de mercantilização das relações sociais e da busca de ampliação do mercado consumidor.
            Acreditamos que - assim como é colocado por Viana -, essa ideia de acumulação flexível é bastante equivocada. É um termo que deve ser superado e, por isso, também utilizaremos o termo acumulação integral (op.cit., 2009, p.70). Não existe flexibilização dos processos de trabalho e nem um relaxamento na disciplina fabril dos trabalhadores; o termo flexível é apenas mais uma tentativa da burguesia e de suas classes auxiliares de esconder o verdadeiro sentido do processo de superexploração sofrido pelo proletariado. O que se tem hoje é um processo muito maior e mais bem articulado de extração de mais-valor relativo dos trabalhadores, ou seja, um conjunto de discursos, ideias, equipamentos, materiais, leis e códigos que propiciam a burguesia uma grande facilidade para exercerem o processo de exploração dos trabalhadores. A acumulação integral invade todas as esferas da vida social do trabalhador, ela não ocorre só e apenas no ambiente fabril, ela está em suas casas, nos seus ambientes de lazer, nos seus programas de TV, nas suas rodas de conversa, em suas escolas e universidades e, para polemizar um pouco mais, até dentro das igrejas que ainda são um “braço invisível” do estado capitalista burguês. A acumulação integral engloba a esfera política, econômica e social do trabalhador, ela toma conta da cultura e se coloca a serviço dos interesses do capital.
            Pensando pela lógica da acumulação integral, a produção cultural no modo de produção capitalista também passa por mudanças que são necessárias para que se possam manter vigentes os valores da classe dominante em uma sociedade capitalista. Nesse sentido, a música sertaneja passou e tem passado por diversas mutações no decorrer de sua história e acreditamos que isso esteja associado às transformações do modo de produção capitalista e a influência do capital fonográfico e comunicacional (indústria cultural).
MÚSICA E SOCIEDADE
A relação entre música e sociedade é complexa, pois se insere em determinado contexto histórico e em determinadas relações de produção desta sociedade. É necessário partir do pressuposto que a música é produto do trabalho humano, cuja consciência e valores expressos são constituídos socialmente, portanto, a partir relações sociais; e no caso da sociedade moderna, produto das relações sociais do modo de produção capitalista. Nesse sentido, a seguir, partiremos das determinações concretas para analisar o desenvolvimento histórico da música caipira, passando pela música sertaneja até culminar em nosso objeto de análise fundamental: a música sertaneja universitária.
DA MÚSICA CAIPIRA A MÚSICA SERTANEJA
O que compreende-se por música caipira e música sertaneja? O que consiste suas particularidades e vicissitudes? Através destas perguntas, permearemos as convergências e distinções entre estas concepções musicais.
Uma das principais características da música caipira é o seu caráter espontâneo enquanto manifestação artística. Originada da classe camponesa paulista, as manifestações espontâneas eram ligadas à produção, ao trabalho, à religião, ao lazer, enfim, ao universo das relações de produção do caipira paulista. A determinação fundamental da música caipira é, pois, “a sua função enquanto mediador das relações sociais, no sentido de evitar a própria desagregação” (CALDAS, 1979, pág. 80).  Portanto, a mediação é feita desde a sobrevivência econômica, como os mutirões, até o convívio social, como essência da integração entre as populações de bairros. Antônio Candido nos traz a ideia deste papel agregador
O pequeno número de componentes da comunidade, e o entrosamento íntimo das manifestações artísticas com os demais aspectos da vida social dão lugar, seja a uma participação de todos na execução de um canto ou dança, seja à intervenção dum número maior de artistas, seja a uma tal conformidade do artista aos padrões de expectativa, que mal se chega a distinguir. Na vida do caipira paulista vemos manifestações como a cana-verde, onde praticamente todos os participantes se tornam poetas, trocando versos e ápodos; ou o cururu tradicional, onde o número de cantadores pode ampliar-se ao sabor da inspiração dos presentes, ampliando-se os contendores (CANDIDO, 1967, pág. 39).
Quanto ao texto da canção na música caipira, raramente o autor particulariza o seu discurso; ao contrário, o poeta caipira, através de sua cantoria, assume a posição de porta-voz de seu povo. Waldenyr Caldas afirma que “o texto da canção está sempre carregado de uma mensagem que permite a identidade com a comunidade, e que atende aos anseios desta” (CALDAS, 1979, pág. 81). 
No entanto, este cenário começa a esboçar mudanças quando, a partir de uma nova estruturação econômica brasileira, pautada na crescente industrialização e urbanização do país (sobretudo nos grandes centros como São Paulo e Rio de Janeiro), ocorre uma abertura para um novo regime de acumulação.  Com a crise do café, o êxodo rural se intensifica, aumentando significadamente o contingente diário daqueles que emigram para o centro urbano, procurando melhores condições de vida na cidade.  É nesse sentido que a arte “rústica” [6] se urbaniza, destituindo-se de um valor e revestindo-se de outro (CALDAS, 1979).
            De acordo com a bibliografia sobre a gênese da música sertaneja (CALDAS, 1987; NEPOMUCENO, 1999), esta deu início com os trabalhos da Turma do Cornélio Pires.  Após frutífera receptividade deste “novo gênero” musical, Waldenyr Caldas analisa a incorporação da música sertaneja na Indústria Cultural:
Quando os agentes da indústria cultural percebem a grande receptividade dessas músicas no meio rural, e já então com certa, ressonância no meio urbano, com a apresentação da dupla Alvarenga e Ranchinho no Cassino da Urca no Rio de Janeiro, em 1930, e com a gravação de grande aceitação de “Tristeza do Jeca”, por Paraguasu, incentivadas pelas gravadoras. São muitas as duplas que dão início à incorporação da música sertaneja pela indústria cultural (CALDAS, 1979).
            Compreendemos aqui Indústria Cultural nos termos de Adorno e Horkheimer (1975) onde ocorre uma padronização e manipulação da cultura, reproduzindo a dinâmica de qualquer outra indústria capitalista, a busca do lucro, mas também reproduzindo as ideias que servem para sua própria perpetuação e legitimação e, por extensão, a sociedade capitalista como um todo.
            O resultado disso foi o exponencial crescimento da música sertaneja enquanto “novo estilo musical”. Consequência deste crescimento foi a perda de autonomia por parte de seus compositores e cantores, que passaram a produzir não aquilo que ansiavam e conheciam, mas o que era determinado por elementos especializados em mercadologia.
            Nasce, com este movimento histórico, a canção sertaneja de caráter mercantil; caráter esse domina sua existência já desde seus primórdios até os dias de hoje.
Com essas incorporações da música sertaneja pela indústria cultural, percebem-se agora novas conotações ideológicas, que se manifestam de forma evidente na linguagem. O tema predominante, que era antes o viver no campo, alterna-se (não é substituído) agora com os “casos de amor” vividos na cidade, numa nítida demonstração de que a música sertaneja já não pertence mais somente ao meio rural e ao interior, de que ela, agora, é urbana também (CALDAS, 1979).
Com o processo de neoimperalismo (o que alguns ideólogos irão chamar de “globalização”), a música sertaneja sofreu diversas transformações e deixou de representar e atingir apenas uma parcela de uma população que vivia no campo e trabalhava o dia todo para poder ter o que comer e sustentar sua família. Em decorrência disso, a música caipira, que falava do cotidiano de seus compositores e de seus ouvintes passou a se denominar música sertaneja e a atingir um público cada vez mais diversificado e desinteressado sobre o cotidiano, as letras, os problemas e os anseios que eram trazidos pela música caipira. Segundo Santos:
A música sertaneja desde a década de 60 vem apresentando mudanças significativas em vários aspectos, e isso de deve à incorporação de elementos associados à estrutura musical, adequação aos instrumentos elétricos (guitarra, contrabaixo), mistura de ritmos, dentre outros (SANTOS, 2010, p. 159-160).
O sertanejo universitário é a principal prova dessa transformação da música sertaneja. Nesse ritmo musical, a viola e o violão acústico deixam de serem os únicos instrumentos de acompanhamento e abrem espaço para a bateria, o contrabaixo, a guitarra, o violino e o teclado. O rock, o Axé, e o pop se misturam e criam um ritmo que cada vez mais se afasta da realidade dos trabalhadores ouvintes e compositores da música caipira que falava de seu cotidiano e de suas dificuldades.
Nesse sentido, podemos afirmar que o sertanejo universitário é um ritmo advindo da indústria cultura e do regime de acumulação integral capitalista. Isso se deve ao fato de suas letras serem escritas com o intuito de passar os valores de consumismo. Cria-se uma cultura consumista que é passada através das letras e do estilo dos cantores e compositores do sertanejo universitário que acaba por propagar e disseminar essa cultura fazendo com que ela se torne dominante.

            Antes de iniciarmos a análise sobre o discurso nas letras destas música, esboçaremos uma discussão teórica sobre valores e música sertaneja universitária, utilizando algumas canções como um exemplo de reprodução de valores dominantes (axiológicos).

Música e Valores

                A música sertaneja – assim como todas as outras representações artísticas e culturais -, perpassa valores. Todas as relações sociais desenvolvidas em um determinado modo de produção são orientadas segundo determinados valores e determinadas concepções. Em uma sociedade onde vigora o modo de produção capitalista e, consequentemente, uma sociedade onde existem antagonismos entre classes, os valores também são heterogêneos:
O ser humano é um ser social e por isso as relações sociais são fontes de valores. [...] em sociedades heterogêneas (de classes) existe heterogeneidade de valores. [...] cada classe social bem como outros grupos sociais, produzem valores diferentes e, em muitos casos, conflitantes. O conflito social é acompanhado pelo conflito de valores (VIANA, 2007, p. 24).
            Tendo como base essa citação de Viana, podemos afirmar que a ideia de neutralidade é algo impossível de se provar porque todos nós somos orientados segundo determinados valores e concepções orientados por nossa condição de classe.  Em sociedades classistas, os valores podem ser definidos como valores autênticos e valores inautênticos, sendo os valores autênticos universais e os valores inautênticos históricos, transitórios e particularistas (VIANA, op. cit., p. 24). Isso quer dizer que os valores inautênticos são valores falsos que servem como base de legitimação para a ideologia da classe dominante e de suas vontades para que os mecanismos de exploração da classe trabalhadora (no caso do modo de produção capitalista) continuem funcionando de maneira correta sem que ajam conflitos ou levantes revolucionários contra o sistema capitalista. Esses valores são históricos porque são construídos em uma determinada época; são transitórios porque mudam de acordo com as necessidades de reestruturação produtiva do modo de produção capitalista e são particularistas porque representam as vontades apenas da classe dominante e não possuem um caráter universal, verdadeiro e emancipatório com o objetivo de superar as contradições do capital, libertando os sujeitos de suas amarras e de suas contradições. Esse papel de libertação está associado à questão dos valores autênticos que por conta da dominação dos valores inautênticos se encontram acobertados e esquecidos no inconsciente da classe trabalhadora.
            Partindo dessa discussão, nossa concepção de valores está associada à discussão apresentada por Viana que diferencia valores axiológicos de valores axionômicos. Os valores axiológicos podem ser definidos como: “[...] aqueles valores que correspondem aos interesses da classe dominante e, portanto, servem para regularizar as relações sociais. Eles “transformam em virtude”, aquilo que é para reprodução de uma determinada sociedade de classes, uma necessidade” (VIANA, op. cit., p.34). Os valores axiológicos são os valores da classe dominante e representam as necessidades, anseios e vontades dessa classe que acabam sendo universalizados por conta de ideologias[7] que legitimam os interesses dessa classe dominante através de instituições e representações sociais, artísticas e culturais.
            Os valores axionômicos podem ser definidos como uma “forma assumida pelos valores autênticos, expressando, geralmente, os interesses das classes exploradas e/ou grupos sociais oprimidos (VIANA, op. cit., p. 35). Os valores axionômicos são os valores reais e universais que expressam as concepções dos grupos ou classes excluídas em uma determinada sociedade.
            Portanto, nesse artigo, estamos partindo do pressuposto de que a música sertaneja universitária é responsável por transmitir os valores axiológicos da classe dominante que são transitórios, inautênticos, históricos e particularistas através de suas mensagens passadas através de suas letras.  Um exemplo disso está na música “Camaro Amarelo” que é interpretada por Munhoz & Mariano. A letra da música diz o seguinte:
Agora eu fiquei doce, doce, doce, doce
Agora eu fiquei do-do-do-do-doce, doce [2x]

Agora eu fiquei doce igual caramelo
Tô tirando onda de camaro amarelo
Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!"
Quando eu passo no camaro amarelo

Quando eu passava por você na minha CG
Você nem me olhava
Fazia de tudo pra me ver, pra me perceber
Mas nem me olhava
Aí veio a herança do meu ‘véio',
Resolveu os meus problemas, minha situação
E do dia pra noite fiquei rico
Tô na grife, tô bonito
Tô andando igual patrão

Agora eu fiquei doce igual caramelo
Tô tirando onda de camaro amarelo
Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!"
Quando eu passo no camaro amarelo

Agora você vem, né? E agora você quer, né?
Só que agora vou escolher, ta sobrando mulher
Agora você vem, né? E agora você quer, né?
Só que agora vou escolher, ta sobrando mulher

Quando eu passava por você na minha CG
Você nem me olhava
Fazia de tudo pra me ver, pra me perceber
Mas nem me olhava
Aí veio a herança do meu ‘véio',
Resolveu os meus problemas, minha situação
E do dia pra noite fiquei rico
Tô na grife, tô bonito
Tô andando igual patrão

Agora eu fiquei doce igual caramelo
Tô tirando onda de camaro amarelo
Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!"
Quando eu passo no camaro amarelo [2x]

Agora você vem, né? E agora você quer, né?
Só que agora vou escolher, ta sobrando mulher
Agora você vem, né? E agora você quer, né?
Só que agora vou escolher, ta sobrando mulher

Agora eu fiquei doce igual caramelo
Tô tirando onda de camaro amarelo
Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!"
Quando eu passo no camaro amarelo

Agora você diz: "Vem cá que eu te quero!"
Quando eu passo no camaro amarelo
Agora eu fiquei doce, doce, doce, doce
Agora eu fiquei do-do-do-do-doce, doce


A escolha desta música deu-se por seu caráter hegemônico e dominante de sua reprodução nos meios de comunicações (rádios, televisores, shows e etc.). De autoria da dupla Munhoz & Mariano, oriundos da capital do Mato Grosso do Sul, Campos Grande, a música inicialmente foi lançada na gravação do segundo DVD da dupla “Ao Vivo em Campo Grande Vol. II” em maio de 2012 e posteriormente lançada em formato de download digital em 25 de junho de 2012. Em menos de seis meses, a música, de acordo com Crowley Broadcast Analysis[8], atingiu a primeira posição da tabela brasileira das músicas mais tocadas e ouvidas nas grandes centrais radiofônicas do Brasil. Portanto, impera-se uma análise de quais valores são reproduzidos e perpetuados através do discurso da letra desta música.
De modo geral, a música conta a história, em primeira pessoa, de um jovem rapaz que almeja chamar a atenção de uma moça. No entanto, por não portar elementos (dinheiro, carro, status, etc.) que possibilitam o êxito de convencê-la de ser um rapaz que possa trazer o que ela almeja e valoriza, acaba não conseguindo chamar sua atenção. Mas um acontecimento muda toda a história: seu pai morre e o jovem rapaz recebe uma grande herança, transfigurando sua vida; vestindo roupas de grife, cuidando de sua aparência, “andando igual um patrão” e, sobretudo, com um novo carro: um Camaro Amarelo. É aqui que ocorre uma guinada na história: a moça, que antes o ignorava, por ter apenas uma CG (modelo de uma moto popular), agora com a herança herdada, torna-se interessada pelo rapaz, agora com status social e ostentando artigos de luxo. Mas o rapaz despreza a moça, já que sua nova condição o faz ter possibilidades de chamar a atenção de várias mulheres. E assim a história torna a repetir. 
É evidente uma grande quantidade de elementos axiológicos presentes na letra desta música.  O primeiro deles é a valoração do dinheiro: o dinheiro como valor fundamental (VIANA, 2012). Com a intensificação da mercantilização das relações sociais após a instauração do regime de acumulação integral, a cultura e o universo psíquico dos indivíduos acabam tornando-se cada vez mais mercantilizados, fazendo com o que a essência do indivíduo, o Ser, seja obliterado e substituído pela aparência do TER, como bem salientou Erich Fromm (1987).  O rapaz só poderá conseguir atenção caso tenha dinheiro, o que possibilita comprar roupas de grife, melhorar sua aparência e, acima de tudo, obter um Camaro amarelo, mercadoria de grande apresso e fundamental dentro da música. O status social do dinheiro, portanto, possibilita o indivíduo ter importância dentro da sociedade capitalista.  Outros elementos que estão subordinados a valoração do dinheiro, tais como o tratamento de outro indivíduo como mercadoria, a valoração daquilo que o indivíduo tem e não daquilo que ele é, reforçam o caráter axiológico dos valores inseridos na letra desta música.
O exemplo de “Camaro Amarelo” de Munhoz & Mariano não constitui um caso isolado dentro do universo da Música Sertaneja Universitária; a grande maioria das músicas deste “estilo” refere-se a valores axiológicos do consumismo, da alienação enquanto relação social, do amor romântico burguês, da valoração da ostentação e etc., tais como “Piradinha” de Gabriel Valim, “As mina pira” de Gusttavo Lima, “Ai se eu te pego” de Michel Telo e entre outras.  Claro que há exceções, onde o discurso da ostentação e do dinheiro como valor fundamental não são reinantes, como nas músicas de Victor & Léo, Paula Fernandes etc., no entanto, estes cantam representações cotidianas que em grande medida são ilusórias, sobretudo sobre o amor romântico burguês.
CONCLUSÃO
            A luta cultural perpassa uma luta mais ampla, que é a luta de classes. Nesse sentido, a análise e crítica de produtos culturais que expressam valores axiológicos tornam-se necessários para demonstrar que as relações sociais que constituem estes produtos culturais são determinadas, não naturais e que reforçam a exploração e dominação.  Nesse sentido, a Música Sertaneja Universitária cumpre um papel de obliterar o avanço na consciência para a emancipação humana e perpetuar valores axiológicos da classe dominante.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ADORNO, Theodor. O fetichismo na música e a regressão da audição. In: Os pensadores, São Paulo: Editora Abril, 1975, vol. XLVIII.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969.
_________________. Os parceiros do Rio Bonito. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1971.
CALDAS, Waldenyr. O que é música sertaneja. São Paulo: Brasiliense, 1982
_________________. Acorde na aurora: música sertaneja e indústria cultural. São Paulo: Ed. Nacional, 1979.
FROMM, Erich. Ser ou Ter?. Rio de Janeiro, Zahar, 1987
HELOANI, Roberto. Corações e Mentes: As novas formas de Autocoação. In: Gestão e organização no capitalismo globalizado: história da manipulação psicológica no mundo do trabalho. São Paulo: Editora Atlas, 2003, p. 105-153.
HARVEY, David. A Condição pós-moderna.  São Paulo: Loyola, 1992.
MARTINS, José de Souza. Capitalismo e tradicionalismo. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1975.
NEPOMUCENO, Rosa. Música caipira: da roça ao rodeio. São Paulo: Ed.34 & EDUSP, 1999.
SANTOS, Daniela Oliveira dos. Adolescentes e o Sertanejo Universitário: o gosto como uma atividade reflexiva. In: Anais do I Simpósio Brasileiro de Pós-Graduandos em Música. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2010, p. 157-163.
ULHÔA, Martha Tupinambá de. Música Sertaneja e Globalização. In: TORRES, Rodrigo (Ed). Música Popular en América Latina. Santiago, Chile: Fondart, Rama Latinoamericana IASPM, 1999, p. 47-60.
VIANA, Nildo. O dinheiro como valor fundamental. Goiânia, Revista Enfrentamento ano 7, n°12, ago/dez.2012
VIANA, Nildo. Os Valores na sociedade Moderna. Brasília: Thesaurus, 2007.
____________. O Regime de Acumulação Integral. In: O capitalismo na era da acumulação integral. São Paulo: Ideias & Letras, 2009, p. 41-93.
MUSICOGRAFIA:
MUNHOZ & MARIANO. Camaro Amarelo.







                                     




[1] Graduando em Ciências Sociais com habilitação em políticas públicas pela Universidade Federal de Goiás – UFG.
[2] Graduando em Ciências Sociais com habilitação em políticas públicas e monitor da disciplina de Antropologia na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás – UFG.
[3]  Podemos entender o mais-valor relativo como a ampliação da produtvidade física do trabalho por meio da mecanização.
[4] No sistema Just In Case a produção era em massa.
[5] O conceito de Ideologia que está sendo utilizado aqui é o mesmo conceito utilizado por Marx, ou seja, Ideologia como falsa consciência sistematizada.
[6] Definição dada por Antonio Candido, que exprime “um tipo social e cultural, indicando o que é, no Brasil, o universo das culturas tradicionais do homem do campo; as que resultam do ajustamento do colonizador português ao Novo Mundo, seja por transferência e modificação dos traços da cultura original, seja em virtude do contacto com o aborígene” (Candido, 1971)
[7] Ideologia como falsa consciência sistematizada, para utilizar a terminologia de Marx.
[8] Crowley Brodcast Analysis é uma empresa que faz a monitoração em rádios, para informações musicais e de veiculação publicitária.  Outro elemento que demonstra sua importância para o capital fonográfico  é que ela fornece, desde 2009, as paradas para a revista Billboard Brasil que se baseia na grade-básica de rádios com mais de 350 emissoras.

.......................
http://www.saps.com.br/sites/estacio/downloads/revista/revista08_humanas-14.pdf

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